Cuenca: reciclagem e descarbonização com perspectiva de gênero

A descarbonização como efeito da gestão participativa e comunitária dos resíduos sólidos liderada por mulheres recicladoras em Cuenca, Equador.

Article, 14 February 2024
Collection
Cidades pioneiras: conectando ação climática e justiça social
Explorando como a ação climática pode contribuir para resultados transformadores em cidades do mundo majoritário
Man at a protest holds a megaphone leading a crowd, holding signs.

Marcha anual para o Dia de Reciclagem, 2023 (Foto: RUMBOS Project, Universidade de Cuenca)

Nos últimos 30 anos, a reciclagem tem sido uma profissão fundamental na cidade de Cuenca, como atividade vital para a subsistência de quem a realiza – em sua maioria, mulheres. O processo de luta histórica da população recicladora em Cuenca permitiu o estabelecimento, em 2008, da Rede Nacional de Recicladores do Equador (RENAREC) (em espanhol), atualmente composta por mais de 50 associações de todo o país (em espanhol).

Com o tempo, a estrutura organizacional da população que trabalha com reciclagem foi influenciada por vários atores, tanto públicos como privados, que deram apoio à formação e à participação política e forneceram equipamentos técnicos.

A cidade de Cuenca, no Equador, é reconhecida como referência regional na gestão de resíduos. A Empresa de Limpeza Pública de Cuenca (EMAC EP) elaborou manuais de boas práticas e realizou inúmeras inovações no Aterro Sanitário de Pichacay. 

Produziu, além disso, uma norma que regulamenta o trabalho no setor de reciclagem, por meio do Fundo de Reciclagem Inclusiva (FRI) (em espanhol), com valor de USD 21/t recuperada, e reconhece que a atividade de reciclagem gera economia para o orçamento da cidade e prolonga a vida útil do aterro sanitário. 

Desde 2019, esse fundo é reinvestido no fortalecimento da população recicladora, em ações que posteriormente se vincularam à Lei Orgânica de Economia Circular aprovada em 2021.

Apesar do contexto institucional descrito, a reciclagem em Cuenca continua a ser realizada em condições precárias, aprofundadas por lógicas de trabalho individualizadas, e é feita majoritariamente por mulheres. 

Neste contexto, o projeto Rumbos, liderado por uma equipe interdisciplinar da Universidade de Cuenca, tem o objetivo de implementar, até 2024, estratégias transformadoras que dignifiquem e melhorem as condições de trabalho da população, com uma perspectiva de gênero, interseccional e comunitária. O presente trabalho apresenta dois dos cinco componentes do projeto Rumbos. 

Nossa batalha foi muito dura e tivemos que caminhar dia após dia para alcançar os objetivos que traçamos. Graças a Deus, atingimos os objetivos que nos propusemos, mas não queremos parar por aí. Queremos alcançar mais dos objetivos que continuamos a nos propor.

Bertha Chalco, presidente da associação
Two people pushing a cart carrying waste trhough a pedestrian crossing.

Trabalho de coleta de reciclagem na rua (Foto: Proyecto RUMBOS, Universidade de Cuenca)

Fortalecimento das organizações de reciclagem como estratégia de descarbonização 

Ao longo de 2022, a população recicladora contribuiu para a descarbonização e a mitigação das mudanças climáticas. Relatou-se ao longo do ano um total de 1.285,22 t de material reciclado, uma contribuição significativa para a redução das emissões de carbono. Desse total reciclado, 51% correspondem a materiais como papel e papelão; 25,08% a plásticos; 12,12% a vidro; e 11,28% a metal. 

95%
Estima-se que entre 600 e 1.500 pessoas se dediquem informalmente a essa atividade, e que sejam responsáveis por 95% do volume de material reciclado na cidade

Esses esforços resultaram na efetiva substituição de matéria-prima virgem por material reciclado, o que evitou a emissão de 7.519,117 t de CO2 equivalente, incluindo as emissões equivalentes de CH4 geradas pela degradação de papel e papelão em aterros sanitários. Esses números foram calculados utilizando o método proposto por Burneo et al. (2020) (em inglês).

De acordo com a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (em espanhol), esse impacto equivale a 15.777 barris de petróleo ou 767.539 galões de gasolina (cerca de 2,9 milhões de litros).

Essas iniciativas não só têm um impacto positivo para o ambiente, como também geram uma economia significativa nos custos operacionais do Aterro Sanitário. Graças à população recicladora, estima-se que tenha sido possível obter uma economia pública cumulativa de USD 26.989,62 por tonelada de material reciclado não processado no aterro sanitário, com base no valor de USD 21 por tonelada detalhado em ECI (2021) (PDF em espanhol). Isso não inclui os custos de transporte e pessoal associados à coleta.

Os dados apresentados correspondem aos relatórios de 142 recicladores entre os 276 reconhecidos pela EMAC.EP em 2022; é importante reconhecer que a população que trabalha com reciclagem não se limita aos recicladores formalmente associados. Há um número significativo de recicladores não associados que trabalham de forma independente e operam em um ambiente com lacunas de informação. 

Nesse contexto, vale notar que a Lei Orgânica de Economia Circular Inclusiva (em espanhol), aprovada em 2021, reconhece a profissão de catador e indica que o Estado deve reconhecer e valorizar o trabalho realizado como parte da gestão integral dos resíduos sólidos. 

A Lei Orgânica afirma também que os governos autônomos descentralizados devem promover a organização dos catadores, fornecendo apoio por meio de assistência técnica e jurídica, identificação oficial e distribuição de equipamentos de proteção individual e de segurança (p. 23). 

No entanto, a ausência de acesso à tecnologia, a falta de processos e registros de entradas e saídas de materiais, e a desconfiança da população recicladora em informar seus dados sobre os volumes recuperados permitem considerar que o volume relatado provavelmente está bem abaixo do real, tendo em vista que, segundo dados do projeto Rumbos (2023), o volume recuperado per capita por reciclador é de uma tonelada por mês, o que está de acordo com os dados nacionais publicados pela Iniciativa Regional para a Reciclagem Inclusiva (IRR, 2015) (em espanhol).

Workers in red overalls sorting through garbage to separate recyclable materials.

Trabalho de classificação Asociação El Chorro (Foto: Proyecto RUMBOS, Universidade de Cuenca)

Os impactos das mudanças climáticas sobre a população recicladora foram documentados na região da América Latina. O estudo realizado por Wiego (2023) (em inglês) revelou que, no Brasil, essa população é afetada por chuvas, enchentes e secas, o que impacta diretamente seu trabalho ao reduzir a qualidade do material reciclado. As mudanças climáticas também influenciam a saúde dessas pessoas, aumentando sua vulnerabilidade a desmaios, desidratação e queimaduras solares. Esta situação ocorre de forma mais concentrada nas mulheres recicladoras, de acordo com o relatório do Circular Action Hub (em inglês).

Não foram encontrados estudos mostrando o impacto das mudanças climáticas na população recicladora no Equador. No entanto, as condições socioeconômicas preocupantes enfrentadas pela população recicladora de Cuenca são abordadas com frequência.

Uma análise do ciclo de vida do sistema de reciclagem, realizada em um estudo de 2021 feito pela Universidade de Cuenca, mostrou que existem desafios significativos relacionados à qualidade de vida e ao bem-estar daqueles que realizam esta importante atividade (PDF em espanhol).

Além disso, o acesso limitado à tecnologia, a ausência de processos técnicos e administrativos para inventariar os materiais recuperados e comercializados e a desconfiança dos recicladores em comunicar os volumes de material representam obstáculos para o setor.

Fortalecer as estruturas organizacionais da população recicladora envolve o fornecimento de acesso às tecnologias e de conhecimentos sobre seu uso, a construção participativa de políticas públicas que reconheçam e fortaleçam a profissão, e a geração de processos educativos de corresponsabilidade cidadã.

Esses processos teriam impactos diretos sobre o reconhecimento e a implementação dos direitos trabalhistas, sobre a dignidade do trabalho de reciclagem, e também sobre a precisão do registro dos volumes de materiais, informando sua contribuição significativa para a descarbonização. 

Estratégia de Políticas Públicas 

Segundo as informações levantadas pelo projeto Rumbos (2023), a reciclagem no cantão de Cuenca é uma atividade primariamente feminina, já que 77,7% das pessoas que a realizam são mulheres. Além disso, 10 das 11 associações locais de recicladores são lideradas por mulheres. Os dados desse levantamento refletem também a vulnerabilidade em que vivem as pessoas que trabalham com reciclagem, devido às condições de pobreza estrutural em que estão inseridas.

De acordo com o levantamento do projeto Rumbos (2023), a população recicladora recebe em média USD 160 por mês pelas suas atividades. No entanto, o rendimento médio das mulheres é de USD 130,9, enquanto o dos homens é de USD 187,6, uma disparidade de USD 56,7 entre os gêneros. Soma-se a isso o fato de as mulheres, além de trabalharem com reciclagem, serem responsáveis pelas atividades de cuidado com o lar e dedicarem duas horas por dia a mais que os homens a esse trabalho não remunerado. Como resultado, os domicílios chefiados por mulheres recicladoras têm rendimentos menores que os chefiados por homens, com uma diferença de USD 21,1.

Baseando-se nessa realidade, o projeto Rumbos aproximou-se de atores-chave que têm o interesse de melhorar as condições de vida da população recicladora. Entre eles, foram identificadas instituições públicas e privadas, ONGs e organizações de recicladores.

Utilizando metodologias participativas e codesign junto aos atores parceiros, foram propostas ações concretas para levar à transformação tanto das condições estruturais, a partir de políticas públicas, como de situações específicas, a partir da formação e educação da população recicladora. Desta forma, o projeto Rumbos propõe um processo contínuo de formação em habilidades comportamentais (soft skills), liderança, questões de gênero e trabalho associativo durante os anos de 2023 e 2024. 

Ao mesmo tempo, propõe-se manter um espaço de coordenação junto aos atores do ecossistema de reciclagem na chamada Mesa Cantonal de Reciclagem de Cuenca, uma instância de articulação política coordenada pelos recicladores, formada por ao menos 20 instituições no mês de dezembro de 2023 e com plano de ação definido para 2024.

Da mesma forma, considerando a perspectiva de gênero como um eixo transversal no desenvolvimento desta proposta, foram elaboradas estratégias específicas para que as mulheres recicladoras sejam realmente incluídas nos espaços de participação e tomada de decisão, tanto nas iniciativas de formação como na Mesa Cantonal. Foi implementado um sistema de cotas 80–20 (80% de mulheres, 20% de homens) para os espaços de formação, e ações afirmativas estão sendo realizadas para que a maioria de mulheres na população recicladora esteja refletida nos espaços de formação.

A criação de espaços de cuidado é, talvez, a ação com maior impacto para efetivar a proposta de inclusão real. Em colaboração com atores como a Fundación Alianza en el Desarrollo (FAD), o projeto criou espaços físicos destinados a dependentes, filhos e filhas de mulheres recicladoras, nos quais há brinquedos, materiais didáticos e a presença de especialistas que fornecem cuidados conforme necessário durante as reuniões e workshops. 

Essa ação foi bem recebida pelas mulheres recicladoras, que agora contam com aliadas para o cuidado durante as atividades das quais participam.

Estratégia de produtividade a partir da perspectiva da reciclagem inclusiva 

Partindo de uma perspectiva voltada à produtividade, propõe-se que um grupo de pessoas recicladoras acompanhe a direção de uma usina de reciclagem, a partir de uma perspectiva colaborativa no âmbito da economia circular inclusiva.

Essa estratégia, que utiliza o empoderamento da própria população recicladora como estratégia para seu fortalecimento ao longo da cadeia de valor, melhora os relacionamentos tanto para os produtores, por meio da prestação de serviços, quanto para os recicladores no que se refere ao aproveitamento de seus próprios materiais e seu relacionamento com a indústria.

Essa proposta busca cortar as relações de intermediação e fortalecer a cooperação entre os agentes da cadeia de valor e as negociações diretas entre eles como estratégia para atingir mudanças significativas na gestão de resíduos e conseguir condições justas para a população recicladora. A implementação desta estratégia foi resultado de construção e validação em conjunto com a população recicladora.

Nessa primeira fase foram identificados problemas organizacionais e produtivos, e soluções foram cocriadas com os recicladores. As estratégias foram então priorizadas de acordo com sua urgência e viabilidade, garantindo que elas estivessem alinhadas com as necessidades e os desejos da população. 

A partir daí se iniciou a segunda fase, ou etapa de intervenção, focada na motivação, capacitação e empoderamento da população recicladora. Nessa fase se está buscando incentivar a geração de ideias de negócios de reciclagem inclusivos e promover a participação ativa dos recicladores no fortalecimento da cooperativa. Também se realizou um evento chamado Reciclatón de Ideas ("Maratona de Reciclagem de Ideias"), no qual se apresentaram e selecionaram as melhores propostas e se formou entre a população recicladora um grupo transformador comprometido com a implementação do projeto. 
 

Two brightly coloured posters with Spanish text.

Cartaz sobre a agenda de trabalho com a população recicladora de Cuenca, 2023-24 (Foto: Proyecto RUMBOS, Universidade de Cuenca)

A terceira etapa é crucial para promover a constituição de uma cooperativa de serviços e seu modelo de governança. O grupo transformador selecionado será acompanhado no processo de constituição da cooperativa, desde a formação da assembleia constitutiva até a elaboração dos estatutos e regulamentos e o registro legal da cooperativa junto às autoridades competentes. Isso permitirá que a cooperativa funcione de forma adequada e cumpra os regulamentos estabelecidos. 

Por fim, a quarta etapa se concentrará na implementação e avaliação do modelo de gestão. A implementação das ideias de negócio selecionadas será planejada estrategicamente, os resultados serão monitorados e avaliados continuamente, e será promovida a comercialização dos produtos e serviços da cooperativa no mercado local e regional. 

A concepção desta proposta teve como foco a melhoria das condições de trabalho e econômicas da população recicladora e a redução da poluição ambiental, alinhando-se com as contribuições da economia circular (PDF em espanhol). Fortalecendo a cooperativa e a participação ativa da população recicladora, pretende-se garantir que os benefícios cheguem a quem realiza diretamente o trabalho de reciclagem. Isso não só contribui para a mitigação dos impactos ambientais, mas também aborda a questão da justiça social, ao reconhecer os direitos trabalhistas da população recicladora. Além disso, é essencial manter uma abordagem participativa e colaborativa em todas as etapas, para garantir o compromisso e a sustentabilidade do projeto por parte da própria população recicladora após a conclusão do processo. 

Visão para o futuro 

O caminho que falta percorrer é garantir que as instituições locais, em conjunto com outros atores e a população recicladora, tenham uma agenda pública que se sustente ao longo do tempo. 

O projeto Rumbos espera, com o apoio do eixo de Políticas Públicas na Mesa Cantonal de Reciclagem, dar visibilidade a um grupo de pessoas recicladoras com capacidade de liderança e voz ativa na tomada de decisões do governo em nível local e nacional, a partir de uma perspectiva crítica e com inclusão real das mulheres recicladoras.

Assim como no eixo de produção, o horizonte é um modelo comunitário produtivo que esteja inserido na cadeia de valor do sistema de reciclagem e reflita o aumento dos indicadores de reciclagem e retornos econômicos redistribuídos entre a população recicladora.

Tanto as ações políticas como as de produção têm um horizonte que visa dignificar o trabalho daqueles que reciclam em Cuenca e contribuir para a descarbonização e a mitigação das mudanças climáticas no nível local, com impacto global.

Leitura adicional

Autores

Head and shoulder photo of Damián Burneo Sotomayo.

Damián Burneo Sotomayor 
Equipe RUMBOS – Universidade de Cuenca 
Engenheiro com especialização em Economia e Desenvolvimento e Engenharia Ambiental pela Universidade de Sevilha. Experiência em gestão de equipes e alta capacidade de liderança. Profissionalmente comprometido com as mudanças climáticas e a responsabilidade social. Pesquisador do Grupo de Economia Circular Inclusiva e Desenvolvimento Sustentável e Coordenador do Componente de Fortalecimento Organizacional e Produtivo do projeto RUMBOS.

Head and shoulder photo of Paola Pila Guzmán.

Paola Pila Guzmán 
Doutora em Filosofia com orientação em Ciência Política pela UANL - México. Mestre em Desenvolvimento Local e Territorial pela FLACSO Equador. Diploma em Gênero e Políticas Públicas pela FLACSO Argentina. Graduada em Gestão Social pela Universidade de Cuenca. Membro da Rede de Mulheres Cientistas Políticas. Linhas de pesquisa em Gênero e Desenvolvimento, Gênero e Políticas Públicas, Gênero e Território. Atualmente é Coordenadora do Componente de Políticas Públicas e Especialista em Gênero do projeto RUMBOS na Universidade de Cuenca, e Coordenadora da Linha de Pesquisa de Gênero e Cuidado do PYDLOS na Universidade de Cuenca. 

Head and shoulder photo of Erika Rea Rubio.

Erika Rea Rubio 
Formada em Artes Visuais pela Universidade de Cuenca. Estudante de Gênero e Desenvolvimento na Universidade de Cuenca. Assistente de pesquisa no Componente de Políticas Públicas do projeto RUMBOS.

Cidades pioneiras faz parte do projeto Alianças para Transformação Urbana (TUC), financiado pelo Ministério Federal Alemão de Assuntos Econômicos e Ação Climática